chautari
performance com habitantes da baixa de coimbra, no largo do romal
A convite da associação há baixa, em parceria com o município de coimbra, integrada no programa verão a dois tempos
2025
Há tantas formas de estar quantas pessoas há no mundo. No Nepal, os viajantes fazem paragens para descansar à beira da estrada, à sombra de grandes árvores rodeadas por assentos de pedra, onde se trocam histórias com os habitantes desse lugar. Chamam-lhe Chautari. O Largo do Romal será esse ponto de encontro entre quem ali vive, quem vem de fora, quem traz a sua cultura e a partilha, convidando outros a entrar na sua vida, nas histórias e práticas que conhece. Uma casa a céu aberto, lugar comum para estar, habitar momentos que vão revelando a cultura múltipla que a Baixa de Coimbra guarda dentro: gestos, receitas, danças, pensamentos, palavras. Vidas que se inscrevem no chão e nas paredes.
direcção artística e texto MATILDE REAL / direcção coral EDGAR VALENTE e HELENA LEONARDO / produção CATARINA PIRES / assistência de produção GIL /participação e co-criação ANA DO AMARAL, ANDRÉ BARATA, AKER MAWOD LEAK, CARMEN CAVALCANTI, CEDRIC, FILIPE PRATAS, JOÃO, LUZIA, MANUELA BAIÃO ABRANTES, MARIA AMÉLIA ABRANTES, MARIELEEN BRUGEMAAN, PRATIMA, PRAKRITI, RODA LAMA, RAQUEL MISARELA, RONALDO CIRO GOMES, ROSE, SACO DA BAIXA, TIAGO, CORO BAIXA VOZ / retratos MARIELEEN BRUGREMAAN / tingimento de ervas daninhas CARMEN CAVALCANTI E SACO DA BAIXA / agradecimentos ANDRÉ BARATA, INÊS MELO SOUSA, RÉMI GALLET/ uma produção HÁ BAIXA e MUNICÍPIO DE COIMBRA / fotografia TERESA RAQUEL MARTINS
Os gestos praticam-se dentro das salas, os cheiros das receitas escapam das janelas, estas perguntas são feitas ao adormecer, em camas não muito longe daqui. São convidados a contemplar, a participar, a dormir, a ensinar qualquer coisa, tudo ou nada, estando apenas da forma que é a vossa. Descansemos uns nos outros, o chão estará pronto para a nossa queda. E se não resultar? O banco continua, a árvore, a pedra, juntos no mesmo estar de cada um. O tempo do banco, o tempo da árvore, o nosso tempo com tanto vagar que caem todas as defesas e nos deixamos ficar, simplesmente, lado a lado.
- Como viver juntos?
- Este lugar é uma pessoa?
- As pessoas podem ser lugares?
- Vivemos ao mesmo tempo?
- Podemos descansar?
- A cidade também escuta?
- Os lugares têm saudades?
- O chão sabe quem tu és?
- Quem fica quando vamos embora?
- Quem escolhe a brincadeira?
RONALDO E MATILDE:
Este é um assunto .... (Privado)
MATILDE:
Sou da Guiné. Conseguem perceber isso. Cheguei num dia impreciso e não tinha ninguém. Vim
de longe com a minha mãe e cá dentro separámo-nos, tão a sul e tão ao centro que mesmo num país pequeno não nos vemos ao horizonte. Estou sem família nem sentido. Como se não tivesse nascido, ainda por existir.
RONALDO E MATILDE:
Caminhei. Caminhar é um bom princípio.
RONALDO:
Os meus avós tinham aqui vindo e eu só sabia histórias, imaginava os seus passos nos meus
passos como se os visse em cada rua, cada largo, cada canto perguntava se eu já tinha aqui
estado. Reconheciam-me as caras e eu mal tinha chegado.
MATILDE:
Mas é a primeira vez. A língua não me assenta e a cor da pele já me apresenta sem eu ter de abrir
a boca. Procuro lugares que me acolham ou pessoas que se abram às vidas que trago. Mas é
complicado.
RONALDO:
Eu sou menina de bem. É fácil arrancar sorrisos e dizer quem sou sem compromisso ou
raciocínio. Não desejo mal a ninguém e quero ver e ser vista em cada lugar onde passo.
RONALDO E MATILDE:
Mas ninguém me chamava, ninguém sabia o meu nome. Eu queria dizer em voz alta.
Apresentar à cidade, poupar trabalho, encontrar aliados.
Ronaldo.
Ronaldo?
Ronaldo.
Como o jogador?
Não. Como eu.
Um nome famoso tem os seus benefícios, lembram de ti, não de quem és. Esquecem que tens imperfeições. Há vícios, invisibilidades. É complexo.
É a cidade.
RONALDO:
É a cidade o os seus cantos, entradas, degraus, fontes, famílias, solidões-alegrias.
RONALDO E MATILDE:
Ninguém ouvia. Ninguém chamava. Eu continuava a percorrer a baixa.
MATILDE:
Mas as paredes têm ouvidos. As esquinas da rua são paredes à escuta. E falam de volta com a
atenção devida. Respondem a pedidos, à nossa procura de sentido numa cidade-labirinto.
Passei o beco das canivetas, aquele que vem ter aqui, e numa parede estava escrito
RONALDO e MATILDE:
O protagonista és tu.
RONALDO:
Ronaldo eu? Ou o outro que é jogador?
MATILDE:
Tu.
RONALDO:
Eu?
MATILDE:
Tu.
RONALDO E MATILDE:
Já nos conhecemos?
RONALDO:
Talvez. Da Universidade?
MATILDE:
Não. Parei de estudar.
RONALDO:
Eu acabei de chegar e estudo relações internacionais. Há faculdade por todo o lado, universitários capacitados, eu sou rapper diplomata à procura de de aliados.
RONALDO E MATILDE:
Conhecemo-nos no Silva, uma tasca ali em baixo.
RONALDO:
Ela segurava um baralho de cartas.
MATILDE:
Ele estava com um amigo a fazer-lhe as rastas, e foi um instante preciso entre mãos ocupadas:
RONALDO e MATILDE:
Como te chamas?
RONALDO:
Bastou isso.
MATILDE:
Pousou o braço no meu ombro e fomos lado a lado. E quando nos viam pensavam, deve ser um assunto
RONALDO: privado. Mas é só uma amizade entre ruas
MATILDE:
Já todos nos viam. Olhavam para nós como um centro e um ponto, curioso encontro.
RONALDO E MATILDE:
Não somos de cá
MATILDE:
Mas tem mais encanto e vulnerabilidade
caminhar em conjunto nesta complec-
RONALDO:
cidade.
No Nepal, quando um viajante caminha uma grande distância, durante muito tempo, há-de
encontrar um lugar à beira da estrada, para descansar à sombra de uma árvore. Para descansar a
cabeça, o coração, o corpo inteiro. Ali, outras pessoas se juntam por baixo da árvore e trocam
histórias entre quem vai e quem fica. Sentem-se em casa, cá fora, com toda a gente. O viajante
fica só o tempo suficiente para ganhar fôlego e continuar a viagem. Não precisa de fazer nada,
apenas estar. Estes lugares chamam-se Chautari. Lugares para descansar. Lugares para estar.
Temos comida nepalesa para vos oferecer, por baixo deste chautari-jacarandá. O ingredientes
vêm do minimercado Evereste, no largo da Maracha.
A atenção vai-se fazendo, é um cultivo lento. Uma atenção que pousa delicadamente nas coisas,
como um insecto. E aí, tudo se deixa olhar. Estar é também darmo-nos a ver sem nos exibirmos
nem escondermos. Permitir que a rua, as paredes, as árvores nos reconheçam. A Marileene
também faz retratos. São retratos em que não olha para o papel, apenas se deixa guiar pela
paisagem complexa e maravilhosa que está sentada à sua frente. Também quer ser vista,
desenhada, percorrida pelo vosso olhar. Que as paisagens sejam retratos e os retratos paisagens,
tudo ao mesmo tempo, em que o que importa é deixar que quem está à nossa frente nos explore
com o olhar, e nos permita fazer o mesmo. A única regra é não olhar para baixo, mas olhar em
frente.
Fotografias de Teresa Raquel Martins